Não são poucas as vozes que
pedem uma frente democrática suprapartidária para conter o que consideram ser
ameaças à democracia promovidas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Diante da inação dos partidos e lideranças políticas, ex-ministros de vários
Governos e vários espectros políticos vêm se unindo para alertar sobre o desmonte
institucional e de políticas públicas em suas áreas. Nesta terça-feira foi a
vez de onze encarregados da pasta de Justiça e seis da pasta de Educação. Os
primeiros publicaram uma carta aberta na Folha de S. Paulo defendendo
o controle de armas e munições e alertando para os "retrocessos"
que o decreto assinado no dia 7 de maio, que facilita a compra e o porte
nas ruas para diversas categorias, representa. Já os últimos se reuniram na
Universidade de São Paulo (USP) de manhã e assinaram um comunicado no qual
expressam preocupações urgentes, como a renovação do Fundeb (Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação) em 2020 e a escalada retórica contra as liberdades e
a autonomia universitária. Há cerca de um mês, oito ex-ministros do Meio
Ambiente também se reuniram na USP para denunciar o desmonte promovido na
área.
s autores da carta na Folha são
Aloysio Nunes Ferreira, Eugênio Aragão, José Carlos Dias, José Eduardo Cardozo,
José Gregori, Luiz Paulo Barreto, Miguel Reale Jr., Milton Seligman, Raul
Jungmann, Tarso Genro e Torquato Jardim. Muitos estão vinculados a partidos adversários,
como o PT e o PSDB, e formaram parte dos últimos quatro Governos: Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), Dilma
Rousseff (2011-2016) e Michel Temer (2016-2018). Para que se tenha dimensão
dessa união, Reale Jr. foi um dos autores do pedido de impeachment de Rousseff,
que tinha Cardozo como ministro Justiça, substituído em seguida por Jungmann na
gestão Temer. Apesar de suas diferenças ideológicas e atritos recentes,
decidiram destacar seus pontos em comum: "Cada um de nós trabalhou para
que fosse estabelecida no país uma política de regulação responsável de armas e
munições", escreveram. "Independentemente dos partidos que estavam no
poder e da orientação dos governos dos quais fazíamos parte, nosso compromisso
sempre foi o de fortalecer avanços que consolidassem o Brasil como uma
referência de regulação responsável de armas e munições para a América Latina e
para o mundo", acrescentaram mais adiante.
Os ex-ministros,
responsáveis pela área de Segurança Pública, explicaram que "a efetividade
das políticas públicas depende de sua continuidade, monitoramento e avaliação
constantes para que possamos aperfeiçoá-las e dar respostas a seus novos
desafios". Eles acreditam que "o controle de armas e munições no
Brasil é uma agenda central para o enfrentamento do crime organizado e para a
redução dos homicídios", cujos índices continuam altíssimos mesmo com as
políticas públicas vigentes —foram cerca de 64.000 em 2017. Por isso, demandam
o "fortalecimento" dessas políticas postas em prática ao longo das
últimas duas décadas, impedindo o que consideram ser "retrocessos".
Ao longo da campanha
eleitoral de 2018, o então candidato Bolsonaro prometeu reiteradas vezes que
seu Governo acabaria com o Estatuto do Desarmamento, aprovado pelo
Congresso Nacional em 2003. A legislação proíbe que civis circulem com armas e
munições pelas ruas e estabelece normas e restrições para a posse em casa, além
de estabelecer mecanismos de controle de produção, circulação e comercialização.
"De acordo com o Mapa da Violência, na década seguinte à sua aprovação, o
Estatuto do Desarmamento ajudou a salvar a vida de cerca de 133.000
brasileiros", escreveram. "Apesar desses avanços, agora se articula o
desmantelamento de uma lei largamente discutida, democraticamente votada e
universalmente executada por diferentes governos", alertaram.
Eles terminam a carta
fazendo um apelo. "Como ex-ministros e cidadãos, estamos convencidos de
que ampliar o acesso às armas e o número de cidadãos armados nas ruas,
propostas centrais dos decretos publicados pelo Executivo federal, não é a
solução para a garantia de nossa segurança, de nosso desenvolvimento e de nossa
democracia", argumentaram. "Ao invés de flexibilizar os principais
pilares do controle de armas e munições de nosso país, precisamos proteger o
legado das conquistas que protagonizamos e concentrar nossos esforços na função
primordial do Estado: garantir o direito à vida e a segurança para todos",
finalizaram.
Unidos pela Educação
Diante dos duros
contingenciamentos — que podem se tornar cortes irreversíveis — na Educação e
a escalada retórica contra professores e universidades, tida como uma ameaça a
autonomia pedagógica e universitária, seis ex-ministros se reuniram também
nesta terça para lançar um comunicado em conjunto. "O Brasil perdeu todo o
século XX na educação, que o Constituinte colocou no alto das prioridades. E os indicadores começaram a mudar para melhor.
O que exige da nossa parte um compromisso com as políticas de Estado
construidas nos últimos 30 anos", afirmou Fernando Haddad (PT),
que dirigiu a pasta de Educação entre 2005 e 2012 durante os Governos Lula e
Dilma Rousseff.
Além do petista, adversário
de Bolsonaro nas últimas eleições, estiveram presentes José Goldemberg (Governo
Fernando Collor), Murílio Hingel (Governo Itamar Franco), Cristovam Buarque
(Governo Lula), Aloizio Mercadante e Renato Janine Ribeiro (os dois últimos do
Governo Dilma). O ministro Paulo Renato Souza (PSDB), que ocupou o ministério
durante o Governo FHC, morreu em 2011, mas a frente de ex-ministros contou com
a colaboração de auxiliares do tucano na elaboração do comunicado. José
Mendonça Bezerra Filho (DEM), que foi ministro do Governo Temer,
declinou o convite, enquanto que Rossieli Soares, seu sucessor na pasta ainda
na gestão do emedebista, não foi chamado por ocupar a secretaria de Educação do
governo paulista de João Doria —o que poderia comprometer suas
relações com o Ministério da Educação (MEC). Outros ocupantes da pasta, como
Tarso Genro e Henrique Paim, foram acionados e não puderam comparecer ou não
responderam.
Assim como os ex-ministros
da Justiça, destacaram seus pontos em comum. "Somos pessoas com
divergências, mas construímos o consenso diante da importância da educação. Um
consenso que abrange direita, esquerda, organizações, sindicatos, municípios e
estados", destacou Janine Ribeiro. "Sentimos uma ameaça nessa marcha que
foi feita nessas décadas, embora mais devagar do que gostaríamos, com o risco à
autonomia universitária, ao risco financiamento da educação de base nos
estados... O que esta acontecendo é muito pior do que imaginávamos",
alertou Buarque. "Estamos tentando dar nossa contribuição para que essa
marcha não seja interrompida, mas, sim, acelerada", concluiu.
Os seis ex-ministros
anunciaram a criação de um Observatório da Educação brasileira para dialogar
com organizações, secretários municipais e estaduais e reitores sobre os
desafios e ameaças de desmonte promovidas pelo Governo Bolsonaro. Asseguram que
também estão abertos ao debate com o MEC, hoje gerido por Abrahaim Wintraub. Entre suas preocupações mais urgentes,
destacaram a expiração do Fundeb em 2020, um fundo nacional que financia a
educação básica nos estados e municípios e ajuda a promover uma política de valorização
dos professores. Criado por FHC 1996 e renovado por Lula em 2006, deverá ser
renovado a partir do ano que vem. Mas até o momento o Governo Bolsonaro não deu
sinais de como isso será feito. "O Fundeb é um sonho acalentado por
décadas pelos educadores brasileiros, que sempre defenderam a criação de um
fundo nacional que garantisse um investimento mínimo por aluno não importando
seu local de nascimento", explicou Haddad. Já Mercadante defendeu que no
"Plano Nacional de Educação estão as principais metas e estratégias, uma
bússola que mesmo em tempestade econômica deve ser preservada".
Outra preocupação urgente
diz respeito à autonomia de professores e universidades. Bolsonaro ganhou as
eleições denunciando uma suposta doutrinação marxista em colégios e centros de
ensino superior, além da promoção do que chama "ideologia de gênero".
Sua incendiária retórica continua a mesma, e Wintraub chegou a anunciar que
cortaria recursos das instituições que promovem "balbúrdia" em seu
campus. Contra esses cortes e discursos, milhares
de estudantes e professores ocuparam as ruas de centenas de
cidades nos
dias 15 e 30 de maio.
"Quando Bolsonaro disse
que queria regredir em 50 anos nos costumes, de alguma forma ele
responsabilizou a Educação por essa imoralidade, que nós chamamos de
liberdade", explicou Janine Ribeiro. "Viver com diversidade é da
natureza da universidade. Tenho a impressão que esses ataques que vêm sendo
feitos são mal dirigidos. Temos experiências de professores de direito que
foram braço do regime militar", argumentou por sua vez Goldemberg, que foi
reitor da USP nos anos 80.
As ideias do Governo para a
área estão voltadas para a regulamentação do homeschooling—ensino feito em
casa pelos pais—, combate a "ideologia
de gênero" e a implantação do projeto Escola
Sem Partido, que promete eliminar uma suposta doutrinação dentro da sala de
aula —seus críticos apontam para a perseguição de professores e alunos. "A
qualidade no Ensino Fundamental sempre melhorou. E no Ensino Médio também,
ainda que menos. Se tiramos o foco disso, da aprendizagem, vamos piorar de
novo. A escola vai perder a centralidade no processo do ensino", destacou
Haddad. Os seis ex-ministros ainda aproveitaram a ocasião para defender Paulo
Freire, patrono da educação brasileira. Sua obra é reconhecida
internacionalmente e estudada nas mais importantes do mundo. Contudo, virou
alvo de Bolsonaro, que promete extirpar o educador das escolas. "Ele é
inconveniente porque fazia a associação entre alfabetização e uma ideia de
conscientização e descoberta de que todos são iguais e têm que ter
oportunidades, enquanto outros sistemas podem limitar essa proposição",
destacou Hingel.
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