Roma / Berlim -
O cardeal Reinhard Marx, durante um serviço ecumênico em Hannover, em maio.JULIAN STRATENSCHULTE (GETTY) |
O presidente de sua Conferência Episcopal, Reinhard Marx, membro do reduzido conselho que assessora o Papa nas reformas da Igreja e homem teoricamente próximo a Francisco, viajará nessa semana a Roma para defender o diálogo reformista. Mas os problemas vêm de longe e a necessidade da Alemanha de imprimir maior ade à transformação e abertura da Igreja começa a abrir fendas importantes entre a Santa Sé e a Igreja mais rica do mundo.
Uma
investigação encarregada pela Conferência Episcopal alemã (DBK) documentou há
um ano 3.677 casos de abusos sexuais cometidos por membros da Igreja
a menores. Desde então cresce a pressão para debater e reformar as estruturas
que permitiram esses abusos, a questão do celibato e o papel da mulher na
hierarquia eclesiástica, por parte de bases que veem como sua Igreja perde
membros rapidamente. Marx, um homem direto e brilhante, lidera essa espécie de
corrente de oposição progressista.
Os
bispos alemães se reuniram no final de semana passado com representantes do
Comitê Central dos Católicos Alemães (ZdK, na sigla em alemão), a organização
que representa 140 organizações, assim como personalidades da política e do
mundo acadêmico. Após a conferência, os bispos indicaram em um comunicado que
escreveram uma reposta a uma carta enviada pelo Papa em junho, em que afirmam
“ter em mente a unidade de toda a Igreja, assim como a situação na região”.
Em
junho, o papa Francisco escreveu uma carta dirigida aos fiéis alemães, na qual
disse “compartilhar a preocupação sobre o futuro da Igreja na Alemanha” e
constatou “a erosão da fé”. Mas também alertou sobre o perigo de se colocar em
andamento processos que podem afastar a Igreja alemã. “A Igreja universal vive
em e das Igrejas particulares, assim como as Igrejas particulares vivem e
florescem em e da Igreja universal, e se encontrarem-se separadas do corpo
eclesial por inteiro, se enfraquecem, secam e morrem”. Por isso, alguns setores
da Santa Sé consideram que o embate está sendo dirigido diretamente a
Francisco.
“A
investigação dos abusos demonstrou que ocorreram crimes individuais, mas também
causas estruturais dentro da Igreja que os permitiram”, diz Theodor Nolzenius,
porta-voz do ZdK. O debate se divide em quatro grandes grupos de trabalho,
sobre o poder e a participação na Igreja, o estilo de vida dos padres, a moral
sexual e o papel das mulheres na instituição. Nolzenius diz que o caminho
sinodal lançará somente recomendações e que Roma não pode se opor a um simples
diálogo, mas reconhece que o processo “aumentará a pressão” tendo em vista um
processo de renovação, em um momento em que a Igreja alemã perdeu mais de
200.000 membros no ano passado.
Marx
recebeu no começo de setembro uma carta do chefe para a Congregação dos Bispos, Marc Ouellet, que incluía uma análise jurídica do
rascunho dos estatutos do caminho sinodal fechado em junho. A missiva
considerava a terceira via aberta pelo caminho sinodal contrária ao direito
canônico. No Vaticano, de fato, receberam com espanto e certo mal humor a ideia
original e as explicações posteriores. A Santa Sé continua considerando que o
problema não foi corrigido, tal como afirmou a Conferência Episcopal dizendo
que a análise se referia a uma versão antiga do texto e que sofreu modificações
desde então.
Perguntada
pelo EL PAÍS sobre as mudanças concretas as que se refere, a Conferência
Episcopal não quer por enquanto dar detalhes do processo, mas a imprensa alemã
especula com mudanças no sistema de votação do fórum. “O erro principal é que
estão lidando em nível nacional com uma questão que afeta a Igreja universal.
São 70 bispos, e na Igreja há 70.000. Estão forçando, atribuindo-se uma série
de competências que não têm. É um assunto que afeta diretamente a unidade da
fé. Não é verdade que isso mudou no novo documento”, diz um membro do alto
escalão do Vaticano.
Adaptar-se
ao mundo atual
No
entorno do cardeal Marx considera-se que a velocidade com a qual as mudanças
ocorrem não corresponde às necessidades da Igreja para se adaptar ao mundo
atual. Os atritos com a Santa Sé, nesse sentido, não são novos. No ano passado
a primeira bomba explodiu. Um grupo de bispos, apoiado pelo presidente da
Conferência Episcopal, o cardeal Marx, abriu o caminho da intercomunicação com
um documento intitulado Caminhar com Cristo sobre a pista da Unidade:
Casamentos interconfessionais e participação comum na Eucaristia, um subsídio
pastoral da Conferência Episcopal Alemã. Ou seja, se colocou que os
companheiros e companheiras protestantes de católicos que os acompanhassem à
missa também pudessem tomar a comunhão. Um passo a mais na tentativa da Igreja
alemã de facilitar a convivência entre religiões e de abrir a sociedade atual
para não perder a sensibilidade social.
A
proposta, que chegou 500 anos depois do repúdio de Martinho Lutero à teologia
sacramental católica, causou um terremoto em alguns setores da Igreja. O chefe
da Congregação para a Doutrina da Fé, o espanhol Luis Ladaria, desautorizou seu
conteúdo. Mas o mal-estar também chegou aos EUA, a única Igreja capaz de rivalizar
com a alemã em poderio econômico. “A proposta alemã atinge o próprio coração da
verdade do sacramento da eucaristia, porque por sua própria natureza, a
eucaristia é o corpo de Cristo”, criticou o arcebispo da Filadélfia Charles
Chaput. Apesar do pedido do Papa para que fosse detida, alguns bispos levaram a
iniciativa adiante.
Na
semana que vem, de 23 a 26 de setembro, o “caminho sinodal” deverá receber um
exame formal por parte dos bispos na reunião de conferência episcopal de Fulda,
no centro da Alemanha. Mais tarde, no final de novembro, a ZdK deverá
aprová-lo. Diversas fontes consultadas dizem que, se não ocorrerem mudanças nos
estatutos acordados, o processo será aprovado sem problemas.
LIBERDADE PARA DISCUTIR
Matthias Katsch, membro do
conselho de vítimas de abusos sexuais, que assessora o Governo alemão sobre
esses assuntos e um dos primeiros prejudicados a erguer a voz, diz que o
caminho sinodal é a forma que os bispos têm de evitar a figura do sínodo e,
portanto, a imposição de normas vindas de Roma. “Dessa forma, existirá mais
liberdade para discutir e para incluir os representantes da sociedade civil”,
afirma.
“A Conferência Episcopal
levou a sério as palavras do Papa de ouvir a sociedade civil e agora encontra a
rigidez jurídica da hierarquia. Uma sociedade democrática não pode permitir que
não exista o direito à discussão”, diz Katsch, que na semana que vem
apresentará em Fulda aos bispos as recomendações dos especialistas sobre as
indenizações às vítimas de abusos. “Os bispos perceberam que há uma profunda
crise na Igreja, mas em Roma não entendem a urgência”, conclui.